2004-2005

 

 

 

A pintura como memória

 

A memória é um diário que regista coisas quenunca aconteceram e não tiveram a mínima possibilidade de acontecer” Oscar Wilde

Quantos de nós nos surpreendemos com as variações da nossa memória em relação à realidade? É a partir desta constatação que o trabalho de Maria Sottomayor se apresenta.

Maria Sottomayor é uma finalista do curso de Pintura da Faculdade de Belas Artes do Porto e neste número mostramos alguns dos trabalhos que foi fazendo durante o tempo da sua licenciatura.

Sem qualquer apresentação pública até à data, Maria tem vindo a desenvolver um trabalho que partiu do questionar do papel e do funcionamento da memória.

«Onde residem os critérios de selecção das nossas recordações e até que ponto temos algum poder nesse processo?» Muito do seu trabalho decorre deste questionar de um processo profundamente pessoal e que se situa completamente fora do nosso controle. Partiu de desenhos onde fazia o paralelo entre objecto desenhado à vista e o mesmo representado através da recordação que ainda restava dele. Os resultados plásticos sempre surpreendentes fizeram-na assumir este assunto como fulcral na sua reflexão artística. «Tudo o que faço tem por base a relação que existe entre mim e a minha memória. Ela não é só um meio através do qual eu realizo uma obra, mas também o próprio objectivo  e objecto do trabalho».

As pinturas realizadas no último ano têm uma componente gráfica importante seja pela atractiva percepção visual seja pelo recurso a escritos na tela. A arte de Maria Sottomayor plana por uma realidade intra-pessoal que se perde pela mutação mnemónica. Um discurso que perde o sentido no decorrer do tempo sobrevivendo apenas a memória da memória nos sinais gráficos. Os escritos que surgem em algumas telas não são mais do que isso, meros sinais gráficos, fazendo lembrar António Sena, que perderam a sua componente cognitiva e ganharam essência plástica no conjunto de elementos que compõem o quadro.

Se os graffitis partem de um grafismo que pressupõe uma identidade e sua apreensão, o carácter gráfico das obras de Maria Sottomayor faz com que se desidentifiquem pelo tempo, pela própria peneira da memória, que descompõe os factos passados, transpõe-os para a tela onde o passar do tempo acaba por fazer desaparecer qualquer significado.

A experiência perceptiva proporcionada parte muito do sintetismo do tratamento cromático. Cores que formam espaços e percursos sintéticos que decorrem dos – e se conjugam com – elementos gráficos, não só os escritos como também as linhas e tracejados,… Neste sentido, Maria rejeita a rotulação de decorativista na intensa opção cromática. Responde sublinhando o carácter pessoal da opção; “é na cor que me sinto mais exposta” – uma relação com a exposição por intermédio da cor. A cor acaba por ter uma importância vital que se impõe pela sua força e pessoalismo.

O facto de estar em formação faz com que estas obras sejam uma pesquisa pictórica e formal in progress que esconde preocupações não propriamente existenciais, mas sim vivenciais passadas analisadas num presente filtrante e interpretante. Uma análise auto-referencial que remete sempre para a memória; uma memória independente que parece não precisar das memórias.

Como iniciante no meio artístico não é representada por nenhuma galeria ou agência comercial, tendo até à data vendido privadamente as suas obras. Com preços que variam entre os 500 e 750 euros, Maria Sottomayor conta expor no próximo ano como resultado natural do término de uma primeira fase da sua formação, algo que aguardaremos curiosos.

Num contexto onde a revalorização da pintura começa a chegar a Portugal, é positivo o sentido descomprometido da juventude de Maria nos princípios a lidar com esta técnica. Um mundo limpo de cosmovisões trágicas. Sem simbolismos, sem sinaléticas prenhes de sentidos, Maria abre-se na frontalidade da cor e das formas por esta criadas.”

João Magalhães, L+Arte, 2006
L+ Arte – link para artigo em pdf